segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

UTOPIAS REPUBLICANAS

A diferença das liberdades



Liberdade guiando o povo (Eugène Delacroix)

Para responder a isso, tentando entre outras coisas, decifrar o equívoco de Robespierre, de Saint-Just, de Danton, de Collot d’Herbois , de Hérault de Séchelles, e de tantos outros próceres do jacobinismo, que terminaram guilhotinados ou exilados com a queda do regime em 1794, é que Benjamin Constant preparou uma conferência que o tornou célebre, intitulada "Liberdade entre os Antigos e entre os Modernos".

Proferida na sala Atenas, em Paris, em 1819, ele atribuiu o desastre político que conduziu a revolução ao Terror, ao fato de que as lideranças de 1789 tinham uma visão profundamente equivocada da liberdade. Não somente isso, os modelos históricos inspirados nos espartanos ou nos antigos gauleses em que eles baseavam sua ação democrática estavam longe de corresponderem a realidade de um governo popular que eles sonhavam implantar na França.
Lembrou que a gente da Lacedemônia nunca soube o que era uma democracia, o mesmo se dando com os seguidores de Vercingetorix (herói gaulês que comandou a resistência aos romanos, sendo batido por Júlio César no cerco de Alésia). Nem Roma, tão exaltada por Rousseau pelo seu ardor cívico, podia lhes servir de alento, pois nunca teve um governo representativo (que é uma descoberta exclusiva dos tempos modernos). A ambicionada restauração da liberdade que os antigos conheceram estava assim fadada ao fracasso, entre outras causas porque a concepção que os jacobinos faziam dela estava longe de ser a verdadeira.
Não que eles fossem mal-intencionados. Ao contrário, os revolucionários eram dotados de intenso fervor cívico e a maior parte do erro deles decorreu de não haver experiências de regimes democráticos historicamente mais próximos a eles, Assim sendo, insistiram em idealizar Licurgo, Sólon, ou Bruto, expressões de regimes vigentes há mais de dois mil anos passados, usando-os como parâmetros de uma republica popular que acreditavam ser a melhor para a nação francesa.
Queriam uma participação intensa do povo nos assuntos públicos, desejavam-no como um parceiro ativo, um sócio nas decisões do legislativo e do governo mesmo. Irritaram-se profundamente quando isso não acontecia, quando tal propósito não se concretizava, atribuindo os erros às manobras da contra-revolução.

O que seria a liberdade nos nossos dias?



Benjamin Constant (1767-1830)

Mas afinal, quais seriam os direitos inerentes ao conceito da liberdade de hoje se comparada à dos antigos? Constant então, de um modo sucinto, apresenta o rol das que a identificam, tal como:

I. o direito de estar submetido somente às leis, de não poder ser preso, nem detido ou morto, nem mal-tratado de nenhuma maneira em razão da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos;
II. o direito de cada um expressar sua opinião, de escolher um trabalho ou profissão e fazê-lo, de dispor da sua propriedade e, inclusive abusar dela;
III. de ir e vir sem que seja preciso pedir permissão seja lá a quem for, e sem ter que prestar contas dos seus passos;
IV. o direito de reunir-se com outras pessoas, para o seu próprio interesse ou para professar o culto que prefere;
V. de passar os dias e as horas a sua maneira conforme suas inclinações;
VI. o direito de cada um influir na administração do governo, seja pela nomeação de todos, de determinados funcionários ou ainda por intermédio de representantes, de encaminhar petições e demandas outras que as autoridades devem levar em consideração.

A liberdade entre os antigos



Liberdade hoje é desfrutar da vida privada (William Hogarth)

Já o que se tinha por liberdade entre os povos antigos era outra coisa. Primeiro é bom lembrar que ela estava circunscrita a um número relativamente reduzido de homens livres, aos cidadãos de Atenas e de outras pequenas repúblicas gregas, e ao civitas romano.

Deixava, pois à margem dela uma massa de destituídos, compostas por escravos, por clientes e demais dependentes, além de todas as mulheres, independente da classe social a que pertenciam.
Feitos tais reparos, Constant lança-se então a identificar o que realmente vinha a ser liberdade para os antigos, começando pelo direito de exercer de forma coletiva, mas direta, distintos aspectos da soberania, em deliberar em praça pública sobre a guerra e a paz, concluir ou não aliança com estrangeiros, em votar leis, pronunciar sentenças, em examinar as contas públicas, os atos, a gestão dos magistrados, em fazê-los comparecer frente ao povo para acusá-los ou absolvê-los;
Ao tempo em que chamavam tudo isso de liberdade. Admitiam a completa submissão de cada um ao conjunto ou à autoridade. Não se encontrava entre eles, pois, os benefícios da liberdade moderna.
As atividades privadas estavam submetidas à severa vigilância, inclusive ocorrendo intervenção direta delas na vida pessoal dos cidadãos (como era caso do romano frente ao censor). Nada restava à independência individual, nem com relação à opinião, nem às profissões e menos ainda ao que diz respeito à religião, visto que a liberdade religiosa lhes parecia um sacrilégio, um crime.
Entre os antigos a autoridade do corpo social se sobrepunha a tudo o mais entorpecendo a vontade dos indivíduos, enquadrando-a ou reprimindo-a. As leis regulavam tudo em detalhes mínimos. Com exceção de Atenas, na maioria das repúblicas o indivíduo, quase sempre soberano nos assuntos públicos, era um escravo nas questões privadas.
Assim sendo, aquele cidadão que estava envolvido em quase tudo o que dizia respeito a sua comunidade, um integrante ativo das coisas públicas, um participante do Corpo Coletivo que atuava em mil coisas (interrogava, destituía, desterrava, condenava ou absolvia, despojava, etc.), igualmente podia ver-se despido de tudo, proscrito ou morto, por vontade do conjunto do qual ele era parte, pois não tinha nenhuma noção dos direitos individuais.
Por mais independente que ele fosse nas questões privadas o antigo não era soberano senão que na aparência, inclusive nos estados mais livres. A autonomia dele era restrita, pois sempre estava cercado de impedimentos de toda ordem que o forçavam a abdicar dela (somente Atenas, para Constant, teve uma configuração da liberdade mais próxima da moderna).


Da Guerra ao Comércio
Possivelmente uma das causas daquele constrangimento ao bom usufruto das coisas privadas se devesse ao estado de guerra quase que permanente em que as cidades antigas se encontravam. Seguidamente punham-se de armas nas mãos umas contra as outras, sendo que talvez fosse por isso que aceitassem passivamente a intromissão das autoridades, dos éforos, dos magistrados e dos censores, em suas atividades mais pessoais.
Além do mais, a liberdade dos homens livres se distinguia em meio a uma ampla escravaria que assumia a maioria dos trabalhos manuais, o que permitia aos cidadãos daquela época envolver-se nas questões públicas de uma maneira mais intensa do que o homem moderno.
Todavia, o comércio historicamente tornou-se mais vantajoso do que a guerra, promovendo de modo mais eficaz a prosperidade das sociedades. Nos dias de hoje, do tempo de Constant, os intensos afazeres de Hermes tornaram-se um estado habitual, o único fim e uma tendência universal.
O progresso e a evolução fizeram com que o comércio e a religião, somados aos avanços intelectuais e morais da humanidade, terminassem primeiro por proibir e depois abolir com a escravidão. O comércio - ao contrário das guerras que sempre requeriam uma pausa ou trégua - era sempre ativo, não esmorecia nunca, não tinha descanso.
Constant, tal como Kant e outros iluministas, tinha uma opinião extremamente positiva dos efeitos do duplo movimento promovido pelo comércio: aproximar os homens de sociedades diferentes e contribuir para um clima de paz e prosperidade entre eles. Sem esquecer-se de mencionar o fato de que sua prática, para ele, estimulava a independência das pessoas e espalha por todos os lados o desejo de felicidade pessoal.


O erro dos revolucionários de 1789
Enquanto o objetivo dos antigos era a crescente participação nas coisas coletivas e nos assuntos públicos em geral, atuando diretamente nas instancias das repúblicas de então (na ágora, no foro, nas assembléias, nos comícios, etc.), o objetivo dos modernos é bem outro. Não que não ambicionem serem cidadãos ativos nos estados atuais, mas a ênfase deles é ter a segurança para desfrutar o que é privado. Isso é que para eles representa melhor a liberdade.
Deste modo, o grande erro dos jacobinos foi não atentarem para a diferença entre as duas liberdades. Ao forçarem os indivíduos do seu tempo a agirem como se fossem romanos ou gregos, entregues inteiramente às causas públicas, provocaram um profundo malogro a sua causa. Imaginaram reproduzir os atos cívicos dos varões de Plutarco quando isso não era historicamente mais possível de ser feito.
De nada lhes valeram as boas intenções, de serem amigos da humanidade, nem o quilate moral dos filósofos que os inspiraram, como Rousseau e o abade Mably.
Em parte, pondera Constant, isso e deveu a que a nostalgia deles por aqueles tempos idílicos de possível virtude cidadã decorreu do “ódio que despotismo causou neles”.


Crítica ao abade Mably

De certo modo, o abade Mably pode ser lido como um antecipador do estado totalitário moderno ou ainda do socialismo utópico com sua preocupação em implantar um Reino da Virtude. Seu intento, ao reintroduzir a soberania de modelo antigo, conduzia a que cada cidadão viesse a se tornar um escravo da vontade coletiva. Na sua lógica, um povo ser verdadeiramente livre o indivíduo teria que ser escravo (Entretiens de Phocion sur le rapport de la morale et de la politique, 1763).

A lei, para ele, não deve limitar-se aos atos cometidos (como recomendava Montesquieu e entre outros), mas sim estendida a todos os aspectos da vida humana, inclusive aos pensamentos, às suas impressões mais fugazes, sem que restasse ao indivíduo nenhum refúgio (tese essa que traía o velho espírito vigilante e policialesco de um abade-mor).

Ao detestar a liberdade individual em nome da emancipação coletiva, chegou a extasiar-se com os antigos egípcios por viverem num estado que regulava tudo pela lei, inclusive as distrações, as necessidades, e até o amor. Viu em Esparta “um vastíssimo convento” que poderia vir a servir como farol para os tempos presentes. Tinha tal ódio às paixões humanas que pregou a submissão à vontade coletiva tudo o que fosse possível, suprimindo os direitos individuais (que seriam compensados pela intensa participação no poder social).


Da independência individual
Para Constant a liberdade individual era a primeira das necessidades dos modernos, por conseguinte nenhuma das instituições da antiguidade que limitavam e prejudicavam a liberdade individual resultava ser admissível entre os modernos.
Opôs-se com veemência a uma Lei do Ostracismo que tentou vingar na época do Consulado (1799-1804), pois ela infringia direitos que a sociedade deve respeitar. Além disso, ninguém tinha permissão de exilar um cidadão: "Qualquer exílio político é um atentado político”. O mesmo dizendo em relação à existência da censura, a qual viu como um poder discricionário. Para Constant a única censura tolerável era a “da opinião pública".
Somos homens modernos que desconfiam da admiração pelas coisas antigas, queremos isso sim, disse ele, é desfrutar cada um dos nossos direitos, desenvolver nossos talentos, cuidar da nossa família sem a necessidade de nenhuma autoridade, entendendo que "a liberdade individual é a verdadeira liberdade". Parodiando o "Cândido" de Voltaire, que cada um de nós cuidasse do seu próprio jardim.
Não é cabível pedir aos povos de hoje sacrificarem sua liberdade individual em troca da liberdade política. O antigo despotismo já não é possível entre os modernos.


Meios de defesa da liberdade
Quais seriam, por assim dizer, os instrumentos que o homem moderno pode contar para que seu espaço de liberdade privada e sua autonomia não seja invadido pelas forças do despotismo?
Em primeiro lugar, Constant aponta para o Comércio: que vem a ser a base material que ampara a liberdade individual, pois ele libera os indivíduos, enquanto que o crédito modera o possível arbítrio da autoridade ("o dinheiro é arma e freio ao despotismo").
O que faz com que nos dias que correm o poder particular sobrepuje o poder político, visto que a riqueza é um poder disponível.
O Sistema Representativo, por sua volta, é o que ajuda a uma nação depositar em alguns indivíduos eleitos o que não pode ou o que não quer fazer por si mesma.
Trata-se de um poder outorgado a um número limitado de pessoas pela massa do povo que quer que seus interesses sejam defendidos, entre outros motivos por não ter tempo de defendê-los. Evidentemente que cabe ao povo vigiá-los e até revogar-lhes o poder em caso de evidente abuso.
Por último, no intuito de complementar o bom funcionamento das instituições, um dos bastiões da independência individual vinha a ser a Educação Moral dos cidadãos. A obra do legislador moderno deve visar à autonomia dos indivíduos não lhe perturbando as ocupações. Dar-lhes o exercício do poder por suas decisões e voto, garantir-lhes o direito de controle e vigilância sobre as coisas públicas estimulando-lhes os desejos e a possibilidade de satisfazê-los.
E tudo isso em função de que o objetivo dele, e de tantos outros liberais, não era somente alcançar a felicidade, mas por igual visava "o aprimoramento da alma", sendo que "a liberdade política é o meio mais eficaz e mais enérgico que nos deu o céu para nos aperfeiçoar".


Bibliografia
Constant, Benjamin – De la libertad de los antiguos comparada con la de los modernos, in Escrito Políticos. Madri: Centro de Estudios Constitucinales, 1989.

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